Entremeados – Entrevista com Júlia Tygel

Citizen Journalism, Estilo de Vida, Júlia Tygel


Compositora, arranjadora, pianista… ela se explica. Não preciso colocar as perguntas, veja a seguir. Aproveite a entrevista exclusiva, adorei fazer.

Daqui para a frente, Júlia Tygel:

As únicas músicas do meu CD que são misturas diretas de duas músicas pré-existentes são a “Estrada Branca”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, entremeada com a Arabesque No. 1 de Claude Debussy, e a “Senhorinha”, de Guinga e Paulo César Pinheiro, entremeada com o Prelúdio em Sol da primeira suíte para violoncelo solo de J. S. Bach. Em “Valsinha” aparece uma citação do tema inicial de “João e Maria” (Sivuca e Chico Buarque) em contraponto com a melodia da música principal, mas apenas no final.

A idéia de “entremear” tem mais a ver com uma proposta geral do CD que com a mistura de temas específicos, que como disse acontecem apenas em algumas músicas. Eu diria que cada canção se entremeia um tanto com ela mesma, no sentido de que seus próprios elementos (principalmente os elementos melódicos) foram usados para criar seu acompanhamento, seu desenvolvimento, sua harmonização. Esse tipo de procedimento é muito comum em composições ligadas ao universo da música erudita, que, aqui, foram trazidos para o universo das canções populares brasileiras.

O nome também se refere à união entre pessoas e instrumentos nesse trabalho: entre o piano e o violoncelo, o piano e o contrabaixo acústico, e dois violoncelos; e ao fato de haver uma “formação curiosa” de um “duo de três”: as peças para piano e violoncelo são todas para um pianista e um violoncelista. No entanto, gravei e toco com duas violoncelistas, que se revezaram nas músicas do CD e hoje se revezam nos concertos: a Vana Bock e a Adriana Holtz. Para mim isso é um privilégio, porque as duas são excelentes musicistas e acabo aprendendo em dobro. Fora o fato de que há mais disponibilidade de datas para concertos dessa forma, pois as duas são muito requisitadas. Como são muitos amigas e muito éticas, então é um triângulo musical que funciona muito bem!

Para escrever esses arranjos eu ouvi incessantemente cada canção, e tudo o que poderia me inspirar – além do que já estava no meu imaginário, pelo que já tinha familiaridade anterior. Na minha escrita acho que há muita influência de Brahms e muita inspiração em Bach, que sempre ouvi muito (e é na minha opinião uma espécie de “Deus” da música). Vou responder nas suas perguntas um pouco de cada procedimento que usei em cada música, já que a sua pergunta foi tão específica! Segue abaixo.

CD Entremeados

1. Beatriz
autores: Chico Buarque,Edu Lobo | editora: Lobo Music/Marola

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=xkoQ2kI0FDQ]
George Chan – Videography and Editing
Audio recorded with a Zoom H2n

Beatriz é entremeada com ela mesma em vários parâmetros. Na sessão central da peça ela está em cânone com ela mesma, ou seja: a melodia começa sendo tocada pelo violoncelo, e o piano toca a melodia com deslocamento de um compasso depois da entrada do violoncelo. Então ela se sobrepõe a ela mesma, sempre o piano um pouco depois do violoncelo. São poucas as melodias que permitem essa brincadeira, e incrivelmente a genial melodia de Beatriz funciona com esse recurso. Eu não tinha percebido isso diretamente, mas em uma análise feita pelo maestro João Mauricio Galindo, ele viu que o acompanhamento do piano para a melodia, quando ocorre no violoncelo, foi feito com uma parte da melodia original – isso foi intuitivo. Acho que esse é um dos arranjos que tem bastante influência de Brahms, escrito em uma época em que eu estava tocando a primeira sonata para violoncelo e piano do compositor.

2. Eu não existo sem você
autores: Chico Buarque,Tom Jobim | editora: Fermata

[youtube http://youtube.com/w/?v=wnTprCL7csM]
George Chan – Videography and Editing with the help of Alice Wong, Vincent Wu
Audio recorded with a Zoom H2n

Esse é meu arranjo mais simples, o primeiro que escrevi para esse projeto. A melodia foi dividida entre o piano e violoncelo, em contraponto a três vozes, que alude bem livremente a uma estética musical barroca (bem livremente mesmo). A melodia original aparece “escondida” nessa trama contrapontística, e se repete três vezes. A cada repetição, a melodia original fica um pouco mais clara para o ouvinte, e só é apresentada claramente no final do arranjo. Então durante o arranjo o ouvinte pode ter a impressão de que “já conhece” aquela música mas não sabe exatamente de onde, e só reconhecer do que se trata no fim da música.

3. Ciranda da Bailarina
autores: Chico Buarque,Edu Lobo | editora: Lobo Music/Marola

[youtube http://youtube.com/w/?v=_S2Kvwfl36E]

Para escrever esse arranjo eu me inspirei deliberadamente no 2o movimento da 1a sonata para piano e violoncelo de Beethoven. Fiquei ouvindo esse movimento no “repeat” do som da minha casa por dias e dias. Eu queria que minha versão da Ciranda da Bailarina tivesse o mesmo caráter desse trecho da sonata de Beethoven – não a mesma forma, nem a mesma melodia, nem os mesmos recursos, mas o mesmo caráter. Por isso fiquei ouvindo e não exatamente estudando a música, era algo mais abstrato que eu queria captar. A minha versão dessa música eu praticamente poderia considerar que é uma nova composição minha, a partir do tema do Edu Lobo, tanto que comecei chamando-a de Sonatina da Bailarina. Isso foi um procedimento comum na história da música – compor novas músicas a partir de um tema pré-existente de outro compositor – que hoje foi coibida pela questão dos direitos autorais. E eu não quero desrespeitar o Edu Lobo e o Chico Buarque, meus ídolos, obviamente. Então mantive o título original e chamei o que fiz de “arranjo-sonatina”. Mas o que acontece nessa música, realmente, é que usei o tema original para desenvolver seções musicais inteiramente novas, derivadas do tema, mas já com muitos outros elementos adicionados ou modificados. Cada sessão da música usa o tema de uma maneira diferente, como fazem os compositores da música erudita, e como ocorre nas sonatas clássicas ou do início do romantismo, como é o caso da sonata beethoveniana que inspirou minha criação.

4. Valsinha
autores: Chico Buarque,Vinicius de Moraes | editora: Cara Nova/Marola

[youtube http://youtube.com/w/?v=0hiI_Mrgor0]

No final desse arranjo ocorre a citação do tema inicial de “João e Maria”, música de Sivuca e Chico Buarque, em contraponto com a melodia de “Valsinha”. Escolhi essa música para entremear com a outra pela sua relação de sentido na letra – as duas falam sobre um amor triste, com uma beleza e uma ternura, mas com uma certa mágoa embutida. E as melodias, quando experimentei, de fato encaixaram. Afora isso, no arranjo eu usei principalmente as quatro primeiras notas do tema da “Valsinha” e teci variações melódicas sobre essas quatro notas. Outra característica do arranjo é a presença de fórmulas de compasso diferentes: com frequência, o piano está “pensando” o ritmo de uma maneira e o violoncelo está “pensando” o ritmo em outra (para os músicos, 3/4 e 6/8). O resultado é que cada um acentua lugares rítmicos diferentes. Isso foi um recurso para trazer uma dramaticidade e um certo “desencaixe” para a valsa original da canção, que se refere ao desencaixe emocional retratado pela letra.

5. Invenção sobre um número telefônico
autora: Júlia Tygel

[youtube http://youtube.com/w/?v=7S9stvMNb_I]
George Chan – Videography and Editing
Audio recorded with a Zoom H2n

Essa pequena música minha foi composta sobre o número de celular 92021245, antigo número do grande pianista e amigo Bebeto von Buettner, como consolo para o fato de seu número de celular não fazer nenhum sentido harmônico, quando transformados os números em notas da escala com funções harmônicas. Eu usei o número melodicamente, e ele funcionou muito bem!

6. Caicó
autores: Domínio Público | editora: Domínio Público
[youtube http://youtube.com/w/?v=-POcm_Z2mDQ]
Erika Breno Videography and Editing

Esse é um arranjo, ou uma recriação, em coautoria minha e do contrabaixista João Taubkin. Foi fruto de experimentações mesmo, em muitos ensaios com o tema.

7. Estrada branca / Arabesque no. 1
autor: Claude Debussy,Tom Jobim,Vinicius de Moraes | editora: Domínio Público/Fermata

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=Pgmf7oBwQEk]
Câmera: Erick Mammocio
Edição: Helio Ishii

Aqui de fato há um entrelaçamento de temas específicos. De fato, mais do que citar Debussy em Tom Jobim, é o Tom Jobim que “entra” na música orginal de Debussy. Historicamente, Debussy veio primeiro, e inspirou Tom Jobim. Nesse arranjo, é mais a música do Tom que se adapta à música do Debussy. O encontro dessas músicas foi iniciado intuitivamente, pela escuta – mas logo vi que a harmonia das duas era muito semelhante e que eu poderia sobrepô-las. Na maior parte do arranjo elas estão sobrepostas em contraponto (as duas ocorrem ao mesmo tempo), com algumas adaptações para facilitar seu encontro. Outras vezes elas foram sobrepostas sem nenhuma alteração, e se encaixaram perfeitamente.

8. Casa Forte
autores: Edu Lobo | editora: Irmãos Vitale

[youtube http://youtube.com/w/?v=QHHxl22zheE]

A “Casa Forte” talvez seja o arranjo mais maduro desse trabalho. A música original tem duas partes, que chamarei de A e B. A parte A é mais rítmica e a B é mais lírica. Inicialmente, trabalhei a parte A de forma rítmica e com um acompanhamento um pouco virtuosístico, inspirado nos estudos de Chopin; e a parte B de forma imitativa – colocando a melodia no piano e no violoncelo em imitação, ou seja, um depois do outro repetidamente. Na seção central do arranjo criei um cânone com a melodia da parte A, agora com o caráter lírico da parte B – o mesmo procedimento que tinha usado em “Beatriz”, mas aqui de forma mais complexa: o cânon ocorre em muitas vozes, pois a melodia é repetida 12 vezes, em todos os tons, e seguindo o que chamamos em música de “círculo das quintas” (um tipo de ordenação das notas, muito frequente na história da música). Por isso, no nessa seção, fez-se necessário escrever não mais para piano e violoncelo, mas para piano a 4 mãos – formação capaz de tocar mais notas ao mesmo tempo nesse tipo de contraponto a muitas vozes. O violoncelista é convidado a sair do violoncelo e fazer uma participação no piano. Já fizemos isso de diversas maneiras: a Adriana Holtz, uma das violoncelistas com quem toco regularmente, toca piano bem, e geralmente assume a parte a 4 mãos. No CD, a parte foi gravada pela pianista Thais Nicodemo, que às vezes faz a participação ao vivo nas apresentações, o que é sempre divertido, uma surpresa para o público. Uma vez, em um concerto a céu aberto, ela chegou de bicicleta e subiu no palco fingindo que não sabia de nada… foi uma performance mesmo. No fim do arranjo, os temas A e B se entremeiam, ou seja, são colocados em contraponto, um sobre o outro ao mesmo tempo. E, outra vez, se encaixam perfeitamente!

9. Chora Coração
autores: Tom Jobim,Vinicius de Moraes | editora: Jobim music/Tonga/BMG

(nota: em breve vídeo aqui)

Esse arranjo é tão curtinho que é quase uma vinheta. Ele é bem simples, também: adicionei uma escala ascendente ao final da melodia, que acompanha a entrada da repetição da melodia, de forma que ela soa praticamente circular, indo sempre para o agudo, como se não tivesse fim – a ideia era provocar, rapidamente, essa sensação.

10. Senhorinha / Prelúdio em sol maior
autores: Guinga,J. S. Bach,Paulo César Pinheiro | editora: Cordilheiras(EMI)/Domínio Público

[youtube http://youtube.com/w/?v=F9fDLCbtbWQ]
George Chan – Videography and Editing
Audio recorded with a Zoom H2n

Aqui novamente há o emaranhamento de duas músicas pré-existentes. Eu já estava com idéia de juntar essas duas músicas, porque intuitivamente achava que elas se encaixariam. Então a Adriana Holtz e a Vana Bock, as duas violoncelistas que gravaram o CD, pediram que eu escrevesse algo para o duo de violoncelos que elas têm, chamado Duo Imaginário. Daí eu aproveitei a idéia em mente e o fato de que o Prelúdio da corda sol de Bach é uma peça emblemática do violoncelo. No arranjo, as duas músicas se entremeiam de formas diferentes nas várias seções, aparecendo inteiramente ao mesmo tempo apenas no final.

11. Improviso
autor: Júlia Tygel | editora: Direto

[youtube http://youtube.com/w/?v=v4RQoOtOYPo]

O nome refere-se à liberdade de forma da composição, ligada ao universo onírico, livre. O título foi usado em peças com esse caráter por diversos compositores, como Chopin, Scriabin.

12. Barroca
autor: Júlia Tygel | editora: Direto

(nota: em breve vídeo aqui)

Inicialmente um trabalho da faculdade, acabou se tornando uma peça que eu de fato “assino embaixo”. O nome vem do caráter do tema inicial, que tem um rebuscamento (no sentido de ser “enrolado” mesmo, circular). Mas a estética é, livremente, um pouco Bartókiana, eu acho.

13. Roda Viva
autor: Chico Buarque | editora: Arlequim

[youtube http://youtube.com/w/?v=cWTdC52tqHg]

De novo a música está entremeada com ela mesma… A idéia desse arranjo foi a melodia ir se dissolvendo, assim como a roda viva dissolve os sonhos descritos na letra da canção. Ela é apresentada com uma outra melodia, nova, em contraponto, e vai sendo cada vez mais sugerida de forma indireta ao longo do arranjo. Há um contraste entre a primeira parte, mais rítmica, que no original fala dos sonhos ou dos projetos, e a segunda parte, que tratei de forma mais lírica, que é o refrão que descreve a roda viva vindo e destruindo esses sonhos e projetos. O final do arranjo tem um prolongamento grande da primeira parte, como se os sonhos e projetos de fato fossem adiante, mas termina com uma coda que repete o refrão da parte lírica da roda viva.

Para finalizar veja de pertinho a técnica:
[youtube http://youtube.com/w/?v=ILR4Tk7v3h0]

 

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